Este mês (junho), que se prenunciava ser de muita alegria, foi, para mim e para meus irmãos Nelma e Francisco, de muita tristeza. Depois de vários anos de sofrimento e tratamentos severos, nosso irmão Annibal morreu: de câncer de próstata, acho que a doença que mais ataca o gênero masculino, assim como o câncer de mama é o que mais afeta comumente o sexo feminino. A alegria esperada se devia ao iminente aniversário dele, no dia 22 de junho, data em que ocorreu precisamente a sua morte.
Éramos (tão difícil dizer éramos!) quatro irmãos, e vamos custar a aceitar e acostumar-nos com o seu desaparecimento, assim como com a circunstância de que, de agora em diante, sejamos só três. Parece uma coisa de pouca importância relativa essa redução do número de membros da família, neste caso, irmãos, mas para quem a sofre é muito dolorosa, pois significa realmente uma perda, uma lembrança distante, principalmente porque o destino de cada um de nós levou-nos a viver em quatro lugares diferentes, propiciando uma ausência constante entre todos os irmãos (somos 4 e vivemos em 3 países diferentes); isto quer dizer que não nos víamos com a frequência desejada, embora nos comunicássemos por mail e telefone. Como eu já disse, nós moramos em 3 países diferentes: ele e o Francisco moravam no Brasil, em duas cidades diferentes, a Nelma mora na França – onde moram suas duas filhas – e eu moro no México, aonde fui, desde 1984, viver com meu marido mexicano, e onde também vivem 3 dos meus 4 filhos.
Em conversa com a minha irmã, por telefone, comentamos as duas que tínhamos muita pena de não poder ajudá-lo bem de perto, com a nossa presença física, nosso carinho e cuidado, mas é que as distâncias são enormes e as viagens, bem dispendiosas, para poder chegar até ele, o que nem sempre é tão fácil para nós. Ainda assim, felizmente pudemos os três, alguns anos antes, concretizar uma viagem até Teresina, onde ele morava. Depois de uns trinta e tantos a quarenta anos, pudemos reunir-nos os quatro irmãos, e aí nos vimos diariamente, para desfrutar a companhia de todos os outros. Foi uma viagem ótima, de muitas lembranças boas de quando éramos todos pequenos e vivíamos juntos.
Essas lembranças de quando éramos pequenos ainda afloram à minha mente (e acho que à de todos nós): às vezes, íamos passar deliciosas férias no interior do Maranhão (Coroatá), em casa do meu tio João, período esse do qual me lembro com prazer e alegria: nossos primos Dagmar, Maria Amélia, Guaraci, Agnelo, José, Jaci, Raimundo, Doralice, Vítor e Dalva (um batalhão!), e nossos tios; também me lembro, nessa cidade, do Padre Estrela, que era vizinho do meu tio, e em casa dele eu e o Annibal íamos plantar batatas (literalmente), para depois colher, cozinhar e comer. Era toda uma experiência nova, de plantar raízes, assim como de percorrer um quintal enorme, na casa do meu tio, apanhando frutas: amoras e tamarindos, que comíamos com sal, sem preocupação de nada. Outras férias bem legais eram em casa da minha avó Militina, mãe do papai; ela morava em São Luís, aonde íamos todos de trem. Só a viagem já era um alvoroço, e as férias em si eram bem animadas: já não me lembro muito de todos os primos (o papai e seus irmãos eram 10, então já se pode imaginar a quantidade de primos): Cremilda, Gracinda, Jofre, Maneco, Bita, Magnólia, Márcia, Graça, Martha, e muitos outros, de quem já não me lembro muito. A mamãe era filha única, então não tínhamos primos desse lado (o tio João era irmão da vovó, mãe dela).
Embora tivéssemos uma situação econômica difícil – eu só imagino, porque isso não nos era dito – nos divertíamos muito. Tínhamos a companhia dos vizinhos: Helenita, Humberto e Herbert Matos, a Nina Lago, a Edna Carvalho, e vários outros com quem brincávamos na praça João Luís. Que eu me lembre, não havia uma separação das crianças por gênero nem idade: acho que todos – meninos e meninas – brincávamos com todos. Como estudávamos de manhã, tenho ideia de que a hora da praça era de tarde, ou aos sábados e domingos. Em casa, tínhamos os deliciosos doces da vovó, cujo neto preferido parece que era o Annibal, pois ela fazia os doces e separava o “dele”, talvez para ter a certeza de que ele comia, antes que nós (os outros irmãos) acabássemos tudo. A gente se divertia muito com essa separação, mas acho que não tínhamos ciúme, pois ela sempre fazia tudo para todos. Também íamos ao cinema, de tarde, quase sempre com a vovó. Ela era muito engraçada, nos cuidava muito, não permitindo que ninguém se atrevesse a mexer conosco.
Nossa infância (pelo menos, a minha) foi muito feliz e divertida, e eu não tinha muita consciência da nossa pobreza. Morávamos em casa alugada, mas sempre tivemos empregada e, de crianças, tínhamos babá. Lembro de todas elas: a Florisa, que foi minha babá e do Annibal. Da Nelma, acho que foi a Jacira, e do Francisco, a Teresa. Sempre ficamos amigos delas, principalmente da Florisa, que se casou, e foi morar em Timon, aonde nos convidavam de vez em quando, para almoçar em sua casa. O marido dela trabalhava em uma fábrica de vidros, e eles nos deram de presente dois copos de vidro, com os nossos nomes marcados: Annibal e Laís (por muito tempo, ainda conservamos esses dois copos). Também fomos, eu e o Annibal, convidados para ser padrinhos da filha da Florisa, a Marlene, que até chegou a ir várias vezes à minha casa, muito tempo depois, quando eu já era casada.
Foram infâncias e adolescências simples, bem diferentes da vida de hoje. Lembro que não tínhamos muitos brinquedos (umas bonecas, algumas de plástico [(lembra da “do pé quebrado”, Nelma?], móveis e utensílios de cozinha: panelinhas, xícaras e pratinhos; os meninos tinham carros, soldadinhos de chumbo, piões) e brincávamos na rua ou na praça, com os vizinhos amigos. Além dos já citados, também tínhamos o Pedro, Cláudio, Cássio e Aécio, filhos do senhor Pedro Almeida e dona Angélica, o Quincas, o Paulo Figueiredo (nosso primo e colega de escola).
Todas essas reminiscências foram motivadas pela morte do Annibal, que fez aflorar essas coisas à minha lembrança: parece que o desaparecimento dele – apesar da dor sentida com a sua partida – até me fez voltar à minha infância feliz!
Apesar disso, o que sentimos muito é a falta do nosso irmão. É curioso que antes, quando a situação era a mesma de hoje – isto é, ele ainda estava vivo, e nós já morávamos longe dele – a consciência da sua ausência não era tão presente quanto agora: sabíamos que ele estava lá, embora doente, e não sentíamos tanto essa distância que se interpunha. Mas, agora, que sabemos que ele já não está, o sentimento de ausência é diferente, e se transformou em perda.
Sei que o tempo, e a continuidade da nossa vida, cada um com os seus afazeres do dia a dia, vai minorando essa saudade, e vai ficando só uma lembrança boa, com as recordações do que foi a nossa vida juntos, dos nossos encontros e passeios depois de separados e de alguns episódios acontecidos em algumas dessas vezes.
A vida – seja boa ou má – engole o tempo da gente, a gente não tem mais tempo nem de sofrer, e as lembranças vão-se desfazendo até virarem – e permanecerem – só recordações vividas!
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