Laís Viegas de Valenzuela

Por que esse preconceito?

novembro 21, 2023 | by ipsislitteris.com

Fala-se muito de preconceito, desigualdade e discriminação no Brasil. Claro que nós temos todas essas mazelas separatistas, mas todo mundo se esquece de outro preconceito muito frequente no Brasil, e igualmente humilhante e sem lógica: o menosprezo dirigido pelos sulistas aos nordestinos, esses “baianos” ou “paraíbas“, com suas “baianadas”, como eles dizem para referir-se a nós, ou a algum nosso  comportamento diferente, à nossa procedência geográfica.  Aí nessa denominação, já está implícita a condição de “brega”, “de mau gosto”. É verdade que, dentro do nosso imenso território, parece que nós temos dois Brasis: um, de pessoas brancas e educadas, sem nenhum tipo de restrição econômica, morando em casas ou apartamentos de muito boa qualidade, bem localizados em bairros nobres de cada cidade, com todo o conforto possível, todos os serviços básicos de luz, água, saneamento e energia disponíveis, filhos que estudam em boas escolas particulares, com direito a todos os dispositivos eletrônicos; na maioria das vezes cada filho tem seu próprio carro, enfim, todo mundo sabe do que estou falando, e conhece uma família assim. E outro Brasil, integrado por pessoas humildes de condição, geralmente de pele preta ou escura, sem nada de instrução, na dependência da caridade pública ou da empatia privada para sobreviver; filhos amontoados em um mesmo espaço, sem condições mínimas de esgotos, água, luz elétrica nem telefone. Só que a divisão desses dois mundos não tem como limites necessariamente a região do país em que vivem: ela é principalmente socioeconômica: deve-se à situação econômica de que cada um desfruta. Quero dizer que as cidades do nordeste, além desses falados “baianos” ou “paraíbas”, têm também gente que vive em muito boas condições materiais, assim como os estados do sul também têm gente pobre, que se mostra similar à do nordeste. Então, essa discriminação já aludida não é geográfica nem tem razão de ser! Acho que as nossas principais diferenças, no país inteiro, são socioeconômicas, e não devidas à procedência geográfica do norte, sul ou leste e oeste!  Todas as regiões possuem gente pobre e rica, como ficou patente agora, com as incessantes inundações havidas no sul/sudeste, e as secas ocorridas no norte.  Muitas vezes, pode tratar-se (esses críticos) de gente de baixa condição cultural, educacional ou social: assim nos discriminam (não importa se somos pessoas iguais, como se o fato de termos nascido geograficamente em regiões mais pobres ou mais atrasadas que o sul trouxesse implícito aquele estigma de pessoas inferiores). Parece que, quanto mais baixo o nível educativo/cultural e social do povo sulista, maior é essa discriminação. Esse epíteto é uma generalização muito pouco adequada, porque não constituímos uma massa homogênea; somos de diferentes procedências: piauienses, cearenses, baianos, pernambucanos, sergipanos, alagoanos, potiguares, maranhenses, paraibanos, nem todos compostos de gente pobre ou de gosto duvidoso, nem sempre ignorantes, mal-educados e incultos. Ao contrário, o nordeste está cheio de boas universidades e de professores, cientistas e intelectuais do nível dos sulistas ou do sudeste. Talvez os intelectuais do sul não tenham tanto desprezo pelos nordestinos, porque conhecem os seus pares desta desprezada região, e sabem que eles têm a mesma estatura de inteligência, cultura e conhecimento que as pessoas de qualquer outra origem geográfica. Conhecem os nossos escritores, poetas e outros profissionais, assim como a medida cultural e de conhecimento destes, similar à sua, por isso não os discriminam nem fazem mofa ou piadas sobre o seu berço. Daí, eu concluo que esse preconceito, além de constituir uma demonstração de ignorância (de como essa região já deu ao país figuras ilustres, intelectuais de altíssimo nível), denota ainda uma pobreza de espírito sem par, julgando os indivíduos como uma massa homogênea.

Alguma vez cometi a “falta de educação” de discutir com um sulista (mecânico), em minha casa, aonde eu tinha convidado a família dele para almoçar; tudo se deu porque ele começou a criticar, dizendo que, quando viam em São Paulo “aquela gente” vestindo umas roupas cor de abóbora, mal-ajambradas e cafonas, podiam apostar que eram “baianos” (generalizando, porque ele sabia que eu sou do Piauí). Eu lhe disse que essa “xenofobia” do sul para com o nordeste não tinha nenhuma razão de ser, que a simples característica de nacionalidade não determinava a categoria das pessoas, e que “eu, por exemplo, nascida no Piauí, que gente pobre e de mau gosto existe em todos os lugares, e que eu “não me comparo com você, que nem chega aos meus pés, em matéria de cultura e preparação profissional”. Desci até o nível dele, reconheço, porque ele me quis me diminuir – a mim e à minha região, achando-se melhor, só por pertencer a São Paulo, que é o estado mais rico do Brasil (assumindo que todo esse dinheiro pertencia a ele), sendo eu de mais baixa categoria que ele – por ter nascido no Piauí.  Não sou racista, nem discriminadora, não trato mal às pessoas de nível econômico/social mais baixo do que o meu, mas também não me deixo pisar. Só conheci uma pessoa instruída, bem remunerada – penso – de alto nível social e profissional, de quem já ouvi alguma vez uma referência desairosa a nós, do nordeste: o jornalista Diogo Mainardi. Nem tenho a maturidade – acho que vou cair de podre – para ser tolerante e bondosa para com os ignorantes da nossa verdadeira condição, como era o caso daquele paulista (ignorante mesmo) e desse outro sulista, que teria todas as condições de ser informado e culto, e tinha a situação econômica para isso (com filho nascido em maternidade italiana, escolhida por ele). 

E não falo aqui só dos nordestinos, vivos e mortos, tais como o Rui Barbosa, Gonçalves Dias, o brilhante Castro Alves (prematuramente falecido), Aluísio de Azevedo, Raquel de Queiroz, João Cabral de Melo Neto, José de Alencar, Manuel Bandeira, Ariano Suassuna, Celso Furtado, Milton Santos (e Nailton, também), Graciliano Ramos, Jorge Amado, Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar, nem dos compositores e cantores (homens e mulheres) – como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Torquato Neto, Fagner, Belchior, Bráulio Bessa, Capinam, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Lenini, Maria Bethânia, Gal Costa, Maria Gadu, Alcione, Elba Ramalho, Zé Ramalho e outros que certamente vou esquecer, pois tenho já muito tempo morando fora do país – porque esses já são famosos e considerados. Falo também da gente anônima do nordeste, que tem valor ou “raça” (no sentido de coragem e força), arte (conhecida ou não), que mostra seu valor cultural, artístico, artesanal – assim como sua resiliência – e em outros campos. Então, por que menosprezar as pessoas, só pelo fato de terem nascido em uma zona geográfica mais pobre – mas cheia de riqueza histórica, literária, poética, artística, cultural, artesanal e diversificada? Essa é também uma forma de discriminação e “xenofobia”, insuportáveis e inadmissíveis, porque dentro do próprio país.  Eu tive a sorte de nascer mulher, de pele branca, cabelo escuro (agora, branco), de ter estudado em universidade, ter traquejo social, com uma situação econômica e social razoável, sempre fui respeitada, reconhecida e até admirada, e sempre gozei de muito bom conceito, em meu país e em outros – então, não posso entender nem aceitar ser objeto de discriminação de algum dos meus compatriotas, só pelo fato de eu ter nascido no nordeste. Isso é um tipo de preconceito “cego”, como o racial – que não vê a pessoa que está atrás daquela pele negra – nem aquela que está por trás dessa procedência, aparentemente humilde. Jogam tudo “no mesmo saco” e não compreendem que os indivíduos que assim se vestem e se comportam devem essa aparência e condição à pobreza e humildade em que nasceram e continuaram a viver, mesmo por falta de uma mão caridosa que as tivesse puxado para fora daquela situação, permitindo-as que alcançassem os degraus de conhecimento e classe que podem distinguir as “pessoas de bem” dos “humilhados e ofendidos”, a quem nunca foi dada uma oportunidade de desenvolver-se!

Todos esses assuntos me deixam profundamente triste. Refiro-me aos maus tratos – de qualquer natureza: pela cor da pele ou pela condição social e econômica – de alguns indivíduos ou grupos para com outros grupos ou indivíduos da mesma nacionalidade. Acho que, devido à minha idade avançada, já ando com as lágrimas penduradas, à flor da minha pele madura, e já não aguento as ofensas ou zombarias (o que também é uma forma de ofensa) dirigidas contra os meus compatriotas de região pobre e subdesenvolvida, que na verdade já nem é tanto assim: mesmo os estados mais pobres da região (como Sergipe, Piauí, Alagoas e Rio Grande do Norte) mostram agora um bom desenvolvimento nas suas cidades, comparáveis a alguns de cidades de todo o nosso Brasil.

Seria desejável uma apreciação dos sulistas sobre nós, nordestinos, destituída de prevenção e preconceito, e só com a disposição de analisar-nos verdadeiramente como seus compatriotas, filhos da mesma terra, tratando-nos com a mesma consideração dispensada aos irmãos das outras regiões, fazendo uma avaliação objetiva, e não sem conhecimento do que estão julgando, e vendo-nos como somos realmente: pessoas dotadas da mesma capacidade, Inteligência e preparo dos sulistas, ou como irmãos de condições econômicas, sociais e culturais menos favorecidas, que só merecem a nossa comiseração e a nossa vontade de ajudar e ensinar, e não o seu tratamento por nós como objeto de zombaria e desprezo preconcebido!                

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