Eu acho que sou uma pessoa forte. Se não fosse, hoje eu seria complexada, de velha, sem graça, teria complexo de haver nascido no Piauí, que quando eu nasci era um dos estados mais pobres e atrasados do Brasil, se não o mais pobre/atrasado. Mas isso não foi assim, nem nunca foi; ao contrário, eu tenho uma autoestima que a maioria das pessoas não tem; sou objetiva, não me atribuo qualidades nem características que não possuo: não sou o máximo, nunca fui bonita, nem rica nem importante, não me orgulho de nada material, nem do lugar onde moro, nem das pessoas que eu conheço, nem das conquistas que já alcancei, mas reconheço que já conquistei muitos lugares ao sol, graças também aos ensinamentos e incentivos que meus pais me deram, à segurança que me transmitiram, e à ideia de que a pobreza não é um fator de infelicidade nem de limitação, nem de estancamento, quando a gente nasce com certa dotação neuronal positiva, como foi o caso da minha mãe (e acho que o meu, também).
Cresci sendo uma pessoa educada, que podia entrar e sair em qualquer lugar, sem estar constrangida ou sentindo-se inferior. Tive a oportunidade, concedida a poucas pessoas no mundo, de estudar a universidade, o que reforçou ainda mais o que eu já tinha recebido como instrução, começando na básica Escola Modelo, que me deu alicerces bastante firmes para o que viria. Depois, no Colégio das Irmãs, tive a possibilidade de ser colega e amiga de muitas meninas, boas como eu, mas elas ricas, filhas das autoridades mais importantes do estado e da cidade, como a Nazaré Freitas, filha do governador, a Sônia, filha do prefeito municipal, a Raquel, a Vera, filhas de conceituados médicos da cidade. Além disso, a oportunidade de reforçar a minha estrutura moral também foi recebida nesse colégio, embora alguns conceitos fossem de muito exagero moral e religioso. Eu assimilei e aceitei o que gostava, parece, pois não me tornei uma pessoa moralista nem preconceituosa, nem religiosa. Também aí tive a convivência de pessoas negras, gordas, tímidas, atrevidas e todo tipo de personalidades.
No Liceu, onde cursei o científico (hoje, ensino médio), além de ter ótimos colegas, homens e mulheres, e conviver com os meninos de uma forma bem natural, como acontece em um colégio misto, estudei com excelentes professores, que chegaram até a influenciar na carreira que eu escolhi: Helena de Gresland (excelente professora de francês), Arimateia Tito Filho (de português, também excelente), Odilo Ramos (Química), Lisandro Tito (Geografia), James Azevedo (História) e Raimundo Wall Ferraz (História), Alcobaça (Espanhol), Valdemar Sandes (Geografia), Luís Gonzaga Lapa (Matemática). Aí tive muitos bons colegas e amigos, como Júlio Brito, Bernardo Melo Filho, Dilson Fernandes, José Alfeu, Aurora Régia, Amparo Rezende, Vanete Moura, Assis Fortes, Lílian e Leda Parente, Paulo de Tarso, Maria e Socorro, Amélia Leal e muitos outros.
Na Faculdade de Filosofia, onde entrei pela primeira vez no dia do vestibular – da mesma maneira que no Colégio das Irmãs, para o exame de admissão – tive ótimos professores: Artur Eduardo Benevides (português), Moisés Soriano Aderaldo (português), Padre Luís Moreira (italiano), Milton Dias (francês), Lireda Facó (Administração Escolar), Pedro Paulo Montenegro (espanhol), Amorim Sobreira (latim), André Coyné (francês) assim como ótimos colegas: Cecília Chaves, Fátima, Leopoldina Colares, José, os irmãos maristas Dimas e Spigolon, Adriano Garcia, Joselina, Jeannette Pouchain, Agerson Tabosa, Mary, Raimundinha, Mirtes e certamente outros cujo nome esqueci agora.
Depois, já trabalhando na Sudene, tive a oportunidade de estudar dois cursos de pós-graduação, com ótimos docentes, dos quais eu me lembro principalmente do Prof. Telmo Maciel (matemática), uma excelente pessoa e professor, muito competente e engraçado; dizia: “se não entenderem esses conceitos matemáticos comigo, suicidem-se, pois não vão entender com ninguém mais!” Na verdade, eu não só entendi e aprendi, como também nunca esqueci esses conceitos matemáticos de “discreto” e “contínuo”, transmitidos por ele. Nesse mesmo curso, tive outro excelente professor de estatística, que dava aula assobiando, enquanto escrevia na lousa cálculos e conceitos (não me lembro do nome desse ótimo professor, do que aqui me penitencio!). Mas, eu, que nunca tinha tido contato com Estatística, aprendi mesmo todos os conceitos e manejos dessa matéria. Excelente, também! Em Fortaleza, tive aulas de alto nível com o Antonio Cabral, perito da OIT; ótimo, assim como a Mary Castro. Minha vida sempre esteve repleta de bons professores, seja em Teresina, em Fortaleza (na Faculdade de Filosofia), em Recife (no curso de pós-graduação da Universidade Federal) e novamente em Fortaleza (na pós-graduação de Planejamento de Recursos Humanos, no CETREDE), a quem rendo hoje a minha tardia, longínqua e silenciosa homenagem, com o meu reconhecimento e gratidão eternos.
Sempre gozei (eu e meus irmãos) de bom conceito moral e social no lugar onde nascemos (Teresina, capital do Piauí), apesar da nossa relativa pobreza material; digo relativa porque ambos os meus pais trabalhavam, morávamos razoavelmente (em casa alugada), não tínhamos o conforto de alguns dos nossos amigos e conhecidos, mas estudávamos em boas escolas, íamos ao cinema, andávamos bem vestidos, principalmente minha irmã e eu, estávamos bem alimentados, tínhamos o básico em nossas vidas, talvez até um pouco mais: sim, porque ainda íamos a festas, em clubes e casas de amigas, visitávamos nossas amigas e trazíamos colegas à nossa casa. Tive até a oportunidade de ir, de avião, passar férias em Belém do Pará, em casa de um primo da minha mãe, quando eu só tinha treze anos.
Era, isso sim, uma vida muito diferente da de hoje, em que toda criança, mesmo antes de falar e andar, já possui um celular, brinquedos eletrônicos e outros dispositivos do mundo informático. A vida hoje é muito individualizada, pois cada pessoa tem o seu próprio celular, com headphones, que lhe possibilitam até ouvir música e mensagens de voz, de forma exclusiva, sem que ninguém participe nem se intrometa nos seus “interesses e assuntos” particulares.
Claro que essa vida tão exclusiva também deve ter suas vantagens, mas, do meu ponto de vista, proporciona um isolamento que é muito esquisito e solitário, para quem foi acostumada a ter uma vida tão coletiva ou pelo menos familiar, como eu. Isso não só é individualista com relação às pessoas que também têm seus dispositivos isolantes e exclusivos: excluem ainda aqueles que não têm condições de possuir tais brinquedos tão próprios; aliás, não têm condições de ter brinquedos particulares nem coletivos, ficam só de longe, vendo ou ouvindo “a banda passar”.
Lá venho eu, com uma leve alusão à desigualdade social/econômica, que é uma coisa que me preocupa muito, não porque eu faça parte dos grupos dos “excluídos”, ao contrário: com todo o apoio dos meus pais, eu batalhei, enfrentei dificuldades, mas “venci na vida” e hoje me encontro em uma condição social, econômica e emocional muito tranquila, que ainda me dá a oportunidade de sentir-me mal por não poder ajudar os meus irmãos brasileiros, que têm uma situação tão diferente da minha (em termos sociais, econômicos e de moradia e alimentação)! Todas as vezes em que escrevo sobre isso, tenho uma vontade imensa de chorar, embora saiba que não sou culpada da sua situação! Essa impossibilidade de ajudar vem da minha condição de viver fora do Brasil: nem posso ajudar fisicamente, nem do ponto de vista material, pois não tenho condições de enviar dinheiro para fora deste país, sem ter que gastar quase o mesmo em comissões bancárias, ou em argumentos que pudessem justificar a minha remessa. Se eu ainda morasse no Brasil, com a situação econômica que tenho hoje, estou certa de que ajudaria os meus irmãos brasileiros, inclusive dando parte do meu tempo e trabalho para tentar melhorar a sua vida. Não sei se nessa época de pandemia do coronavírus eu poderia me expor assim, como imagino agora! Mas que eu faria alguma coisa para ajudar, não tenho dúvida disso!
Lembro muito dos meus “pesquisados” do Cabo de Santo Agostinho – quando eu trabalhava na Sudene – e fazia pesquisas em um programa, em colaboração com a Universidade Federal de Pernambuco – onde via cenas de cortar coração! Tenho muita vontade de rever essa “gente humilde”, não só de condição, mas humilde também de atitude: elas abriam as portas de suas casinhas simples para mim e abriam o seu coração para contar todos os insucessos, que eram constantes, ou a sua vida cotidiana, repleta de dificuldades de todo tipo. A ingenuidade era tamanha que uma delas, que já tinha muitos filhos, todos pequenos, barrigudos e raquíticos, alguma vez me disse que tomava, “de vez em quando, só quando se sentia mal”, as pílulas anticoncepcionais que lhe davam no posto de saúde! Que desespero me dava! Também sei que não me cabia estar fazendo preleções sobre a limitação da natalidade entre eles! Todas as famílias trabalhavam como cortadores de cana de açúcar, uma atividade bastante pesada e esgotante, mesmo. Eles, homens e mulheres, chegavam do corte da cana, suados e cheios de fuligem, pois a cana tem que ser queimada, antes de começarem as atividades de corte, e nisso se sujavam, da cabeça aos pés, da cor deixada pela fumaça das queimadas.
Mas, agora eu fico pensando que as coisas não acontecem quando a gente deseja: quando eu tinha acesso a essas pessoas, não dispunha de dinheiro para ajudá-las, e agora, que tenho um pouco de dinheiro, já não tenho acesso àquelas famílias!
Tenho muita saudade do meu povo, dos meus compatriotas do meu Brasil! Só de pensar neles, na vida que levavam, me dá vontade de chorar, de me lembrar de tanta premência econômica, tanta carência de tudo que é material! Mas a bondade era sempre presente. Não sei por que sinto essa emoção tão grande, ao me lembrar daquela pobreza! Nunca cheguei a ser tão pobre quanto eles eram; em alguma das minhas “visitas”, uma das mulheres precisou ir à cidade (seu lugar de moradia era um pouco mais distante da cidade), então me disse, com a maior naturalidade, como se estivesse falando para si mesma: ”vou ter que ir ali no Cabo (o centro da cidade), e vou virar este vestido pelo avesso, pois está muito sujo” (e era o único que ela possuía). Isso me cortava o coração: ouvi-la falar com aquela simplicidade em uma coisa que denota um grau de pobreza tão absoluta, que constituiria uma vergonha para muita gente, que só pensa em ter um vestido novo a cada vez que tem que ir a qualquer lugar sem a mínima transcendência! Depois que eu envelheci, todas essas futilidades, de ter necessariamente uma roupa nova pra ir a qualquer lugar aonde você precisa ir me provocam quase uma indignação, que eu nem sei expressar com palavras! Não que eu condene as pessoas por terem coisas materiais, mas porque me parece uma absoluta futilidade, uma superficialidade inexplicável, esse tipo de preocupação: de ter sempre um vestido novo (indispensável) para ir a cada lugar!
Eu sempre fui uma pessoa de cabeça muito livre, no sentido de usar qualquer coisa de que eu gostasse, sem me preocupar com o julgamento alheio, se eram ou são adequados ou não as minhas roupas e sapatos, se são novos ou velhos, ou se são das mais finas lojas ou comprados nos mercados e calçadas, como às vezes é o caso. Se eu gostar daquilo, a ponto de vestir ou calçar, não hesito em comprá-lo por estar sendo vendido na calçada do Banco onde tenho conta, por exemplo, nem de estar experimentando os sapatos naquelas condições inadequadas.
E sempre pensei assim, tanto quando eu passava certa necessidade econômica, aí no Brasil, quanto agora, que não preciso de nada, não por ter demasiado, mas por já ter o bastante para mim, e morar aqui, numa cidade cheia de preocupações com coisas materiais, embora não seja um centro de elegância como Paris, Inglaterra, Roma, ou mesmo São Paulo e Rio de Janeiro!
Felizmente, o meu marido também é assim, simples e modesto como eu sou, e embora tenhamos uma situação econômica que nos permite, inclusive, viajar para o exterior, não temos nenhuma preocupação nem a necessidade de ostentar luxo ou uma posição econômica privilegiada!
Acho que gostamos um do outro por esses gostos tão excêntricos, que fogem à maioria das pessoas, sejam pobres ou ricas! Não somos ricos, mas também não temos necessidades que não possamos satisfazer, seja em matéria de alimentação, viagens, roupas ou outros “satisfactores”, como dizem em espanhol. Também, não temos luxo de nenhuma natureza: moramos em uma boa casa, nada luxuosa, mas confortável; nosso único carro agora é grande e bom, mas já tem quase 10 anos.
Assim se resume a minha vida: boa companhia, em boa casa, com boa alimentação e boas condições de moradia; pouco luxo, muito conforto; muita empatia e compaixão pelos demais, que não tiveram toda a nossa sorte ou o nosso empenho e disposição para trabalhar.
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