Laís Viegas de Valenzuela

Minha mãe

agosto 19, 2023 | by ipsislitteris.com

Minha mãe foi uma das pessoas mais equilibradas que eu já conheci na vida: era inteligente, preparada, trabalhava e cuidava da casa e dos filhos (somos 4; isto é, depois da perda do meu irmão, somos apenas 3). Conheci vários trabalhos dela (entre os quais, alguns empregos): como professora primária, na Escola Modelo, onde também foi diretora, lutando com crianças; como revisora, na Imprensa Oficial, lidando com a revisão do Diário Oficial de Teresina; no Arquivo Público da cidade, onde não sei bem o que fazia; na Procuradoria do Domínio do Estado, acho que lidando com processos de terras devolutas do Estado (ela era advogada). Desempenhava muito bem e com muita bravura todas essas atividades, pois era bem preparada, falava e escrevia muito bem (daí a facilidade de todos os filhos em falarem corretamente e escreverem sem erros). Não me lembro de todos os seus chefes, só recordo alguns, como o Paulo Nunes, Omar dos Santos Rocha e o seu irmão Antonio, e José Lourenço Mourão.

Nós morávamos em Teresina, e ela estudou na Faculdade de Direito do Piauí, tendo sido, nesse ano e até então, a primeira e única mulher graduada, entre vários homens. Muitos anos depois, ela recebeu uma homenagem na Faculdade de Direito do Piauí, por essa façanha. Para a sua época, isso foi mesmo uma façanha!

Além dessas atividades de bom nível, ela desempenhou também, sempre que foi necessário, trabalhos de “pouca relevância” social, como confeccionando flores artificiais, de tecido, e como costureira, para ajudar na renda da família, fazendo vestidos para senhoras da classe média alta, como a Maria Lídia Freitas, Lila Lago, Angélica Martins, Mirtes Dantas, além de outras, que se tornaram muito amigas suas, e não só clientes. Com essa situação econômica não tão fácil, era de esperar que ela vivesse reclamando da vida e das condições em que vivíamos, mas isso nunca aconteceu. Nossa casa era bem modesta (simples, alugada), mas muito bem frequentada; nós (todos os filhos) estudávamos nos melhores colégios da cidade (Escola Modelo, Colégio Sagrado Coração de Jesus, Liceu Piauiense), e tínhamos bons amigos e conhecidos.

Minha irmã e eu andávamos muito bem vestidas (a minha mãe costurava as nossas roupas, que eram sempre de tecidos finos e de boa qualidade: organdi suíço, linho, cambraia de linho, nylon americano, cambraia bordada, mas também de algodão fino, tipo popeline, seda, voile e outras cujos nomes nem me lembro mais. Como não tinha que pagar pela confecção da nossa roupa, comprava bons tecidos, ela justificava).

Como prêmio por ser o melhor aluno da série no Liceu, e com algum esforço da parte dela e do meu pai, meu irmão maior, o Annibal, foi estudar no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, que era e ainda hoje é, não só a melhor escola pública, mas também o melhor colégio do Brasil, em termos de qualidade do ensino. O que aconteceu foi que ele, quando estava estudando o primeiro ano do curso ginasial no Liceu, ganhou uma bolsa de estudos para ir estudar no Pedro II, como prêmio ao seu desempenho escolar nesse colégio. A mamãe não só o acompanhou na viagem até o Rio, mas também arrumou para ele um enxoval, como se ele fosse se casar: fez pijamas, comprou meias, cuecas, e nem me lembro mais o que (penso que ele não deveria ter boas roupas antes). Além disso, meus pais também lhe mandavam certa quantia para ajudar nas despesas dele, no Rio, pois ele ainda não trabalhava (tinha 12 anos, quando chegou lá).

O mesmo aconteceu comigo, quando terminei o científico no Liceu (só que eu já tinha 18), e pude concretizar o que eu estou certa de que representou um grande esforço econômico da parte dos meus pais: fui estudar na Faculdade de Filosofia da Universidade do Ceará, visto que em Teresina não havia ainda a faculdade que eu queria cursar: Letras. Ela também me acompanhou a Fortaleza, para conseguir um alojamento para mim, e aí eles me mantiveram durante 4 anos, pagando a Faculdade, alojamento num pensionato, pagando livros, e transporte público. Acho que foi uma situação um pouco apertada para eles (da minha parte, eu cumpri com a responsabilidade que me cabia: nunca deixei de pagar as despesas relativas a meus estudos e estudei até terminar o curso completo). Sinto que eles estavam muito orgulhosos de mim, do meu sucesso acadêmico, pessoal etc. Acho que com meus dois irmãos menores, Nelma e Francisco, as coisas já foram diferentes: eles estudaram já por sua conta, sem contarem tanto com a ajuda econômica dos meus pais. Tenho ideia de que o meu irmão Chico também ganhou bolsa, aos 12 anos, para estudar no Pedro II, mas nem me lembro tão bem disso. Só sei que quase todos se graduaram: eu, em Letras, minha irmã, em Direito, e o Chico, em Engenharia. Só o Annibal não terminou a faculdade em que estudou inicialmente.

De regresso a Teresina, eu encontrei trabalho, como professora de português, no Colégio Batista, acho que a convite de uma afilhada dos meus pais. Também, consegui aulas de português no colégio onde havia estudado antes, como resultado de ter ido conversar com uma das freiras de lá, que imediatamente me deu dois grupos de alunas.  Depois, acho que, na tentativa de conseguir para mim um trabalho mais bem remunerado, minha mãe – que nessa época trabalhava na Procuradoria do Domínio do Estado, ao ter conhecimento de que a Sudene estava fazendo concurso a fim de conseguir uma pessoa para trabalhar como Secretária do Diretor, telefonou para mim (ligou do trabalho dela para uma vizinha que tinha telefone – nós não tínhamos – e era uma pessoa muito amável, que logo me mandou chamar). Aí, falei com a minha mãe, me informei onde era a Sudene, a hora do concurso, e fui, a pé, tendo sido aprovada e conquistado o único lugar disponível (o concurso era neste mesmo dia, e só havia uma vaga). Foi uma porta maravilhosa que se abriu para mim, pois pagavam bem, e aí trabalhei durante mais de 20 anos da minha vida, também graças à iniciativa e destemor da minha mãe, que confiava em mim.

Esse trabalho, que eu conquistei com a ajuda dela, foi como um trampolim para o resto da minha vida (aí, conheci meu primeiro marido, o que me deu a possibilidade de ir trabalhar em Recife, onde depois eu me separei dele; nessa cidade, fiz concurso interno na instituição em que trabalhava e, sendo aprovada, desempenhei funções de nível universitário, o que me ensejou ter um salário mais alto, e poder substituir eventualmente, entre outros, o diretor do Departamento de Recursos Humanos). Já algum tempo depois de vários anos de trabalhar nessa instituição, tive a oportunidade de realizar dois cursos de pós-graduação e um seminário internacional, no México, que foi onde eu conheci o amor da minha vida (meu segundo marido), com quem depois construí uma vida cheia de alegria e de oportunidades para as minhas filhas e o meu filho (que é dele também).

Minha mãe era uma pessoa muito modesta: não tinha sapatos nem roupas elegantes, apesar de saber costurar muito bem; acho que ela preferia que as filhas andassem bem vestidas, para poderem apresentar-se em qualquer lugar sempre alinhadas. A sua preocupação era muito maior com as duas filhas (minha irmã e eu) do que com ela mesma.

Apesar desse cuidado especial que ela dispensava à minha irmã e a mim, os outros dois filhos eram também cuidados e educados, bem alimentados e tratados com carinho. Ela incentivava todos a estudarem, a comportar-se bem, sem nunca ter uma palavra de desprezo ou de crítica ou diminuição para conosco; ao contrário, ela sempre tinha para todos nós uma palavra de estímulo e elogio. Isso é muito importante quando acontece da parte dos pais, pois os filhos ficam com uma ideia positiva sobre eles mesmos, uma autoconfiança desenvolvida e uma autoestima elevada, como penso que foi o nosso caso.

Mas, antes de terminar essa “odisseia” sobre a minha mãe, e os seus impulsos favoráveis para a minha vida, eu queria dizer que não posso deixar de reconhecer o papel da minha avó, e de render-lhe graças também, por ter iniciado este longo caminho que eu tenho percorrido, com conquistas e vitórias. Ela criou a minha mãe praticamente sozinha: quando meu avô morreu, minha mãe tinha apenas 7 anos de idade; daí em diante, tudo ficou por conta da minha avó, que foi quem teve a iniciativa de trabalhar como desesperada para criá-la sozinha, e prepará-la com uma boa educação, estudando em bons colégios, e para que a sua filha única pudesse depois cursar uma faculdade (aliás, eu nem sei bem se essa escolha foi da minha avó, ou se partiu mesmo da minha mãe), tivesse desenvolvido as oportunidades que a fizeram crescer na vida e que fizeram dela a mulher ousada e destemida que sempre foi, e dar um exemplo de valor e coragem a todos os seus filhos: meus irmãos e eu. Atribuo essa “raça” a essas duas mulheres.

Minha mãe era uma mulher forte, apesar da sua compleição miúda. Estimulou todos os filhos a estudarem, e com isso não me refiro só aos estudos mais básicos, para os quais tinha muito cuidado com a gente. Também estimulou todos a estudarem um curso universitário, como ela havia estudado, embora isso pudesse termos seguido só com o seu exemplo, e não nos obrigando ou “empurrando” no sentido de termos uma carreira profissional. Era uma coisa muito natural para nós procurarmos estudar, decidindo por nós mesmos a faculdade que queríamos cursar. Comigo, até mesmo no nível universitário, ela desempenhou um papel muito importante. Não que tenha decidido o que eu ia estudar, em que universidade, nem o que ia cursar. Essas foram decisões e escolhas minhas, mas tenho que reconhecer que sempre tive o seu apoio e estímulo, inclusive com a sua presença física, como já fiz referência.

Que sorte é ter nascido com uma mentalidade (ou será que isso é adquirido?) confiante, como era a da minha mãe! E ter conseguido transmitir isso a todos os seus filhos! Isso é felicidade, e não o fato de contar com toneladas de coisas materiais inúteis, que protegem o corpo, sim, mas não alimentam a alma, como as características positivas e de confiança que cada um traz dentro de si, como herança! Graças a isso, pudemos desenvolver-nos – cada um à sua maneira – em toda a vida, sabendo que, mesmo que faltasse o pão, iríamos sair e procurar trazê-lo, com a força da nossa coragem e com a ousadia do nosso destemor, como a nossa mãe sempre fez (e o nosso pai também, embora não com tantas possibilidades).

Já morando eu no México, ela ainda veio me visitar, mas já não era aquela mulher forte e destemida de antes: com a idade avançada, tornou-se uma pessoa dependente e resmungona; sinto que a nossa relação já não foi a mesma de quando ela era mais nova e sempre me apoiava, até nas coisas menos transcendentes, como escolher modelos de vestidos e dar-me receitas de comida. Cuidou com muita dedicação e amor das minhas quatro filhas, quando eu tinha que viajar a trabalho, e já estava separada do meu primeiro marido. Também me deu muito apoio, ela e meu querido pai, quando vim estudar um mestrado no México, ficando eles com todas elas em sua casa. Ela sempre foi uma pessoa muito presente na minha vida, dando apoio e trocando ideias comigo, a respeito do que eu ou ela queríamos fazer. Lembro dela com saudade, da mulher forte e corajosa, que me dava muito incentivo e apoio nas minhas decisões. Embora eu tivesse ficado um pouco decepcionada com ela, quando veio me visitar, quando já não era aquela mulher valente e decidida que eu conhecia; é que acho que eu nunca soube compreender o que o tempo e a vida fizeram com ela: a morte do meu pai a deixou muito abalada e um pouco sem vontade de enfrentar a vida sem ele, mas sinto que ela foi sempre uma pessoa muito significativa, amada e necessária na minha vida. Nos dias de hoje, ela e a minha avó seriam consideradas como mulheres empoderadas, para usar a linguagem de hoje, com as características de mulheres lutadoras e fortes dessa categoria, que conseguiram levar adiante a família que até hoje somos, estando cada um de nós, independentes e autônomos, em cada um dos quatro cantos do mundo!    

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