Hoje, o que me inspirou foi uma palestra do Leandro Karnal, que ele começa ludicamente – já nem sei mesmo a propósito de que – mas, contando a história dinamarquesa infantil de Hansel e Gretel (no Brasil, João e Maria), em que as crianças, devido à situação de penúria dos pais (a mulher era madrasta, e não mãe dos meninos), são deixadas por duas vezes no bosque, para aí perder-se, como alternativa a morrerem de fome, em casa: da primeira vez, o menininho, astutamente, colocou pedrinhas para indicar o caminho, para que pudessem acertar voltar, o que de fato aconteceu. Os pais, novamente, os levaram ao bosque, com a intenção de deixá-los ali, mas desta vez o menino, por não conseguir mais juntar as pedrinhas, colocou pedacinhos de miolo de pão, que os passarinhos logo comeram, o que impediu que as crianças acertassem o caminho de volta a casa. Sem poder voltar, andaram errantes no bosque, até que se depararam com uma pequena casa toda feita de docinhos, o que fez o encanto dos dois irmãozinhos. Começaram a comer, e aí apareceu a dona da casa, que na verdade era uma bruxa.
Fingindo ser muito boa, a bruxa logo pôs os meninos para dentro de casa, deixou-os comerem os doces, mas logo depois prendeu o menino numa jaula, com o fim de engordá-lo, para mais tarde comer. Todos os dias, ela vinha ver se ele já havia engordado, pedia que ele colocasse o dedinho para fora da jaula, e via o seu progresso. O menino, astutamente, conseguiu um ossinho das primeiras comidas, e punha para fora, para que ela visse como ele estava. Então, ela via que ele ainda estava magrinho, e não podia comê-lo. Um dia, ela se cansou de esperar e disse à menina que já ia comer o garoto, assim como estava. A menina, com o pretexto de ajudar a bruxa, ajudou a acender o forno, e quando a bruxa foi ver se já estava quente, a menina empurrou-a para dentro do forno, tendo a bruxa morrido queimada.
Já não me lembro do resto da história, que eu também já tinha ouvido e lido, quando criança, mas é uma narração cheia de crueldade, como muitas das historinhas que eu lia ou ouvia, quando era pequena. Eu ficava fascinada (acho que toda criança possui sempre um pouco de sadomasoquismo!), mas, depois que cresci, achei que esses “contos de fadas” eram muito aterrorizantes, ou impressionantes, a ponto de causar profunda pena nas crianças. Só me lembro que fiquei muito impressionada com outra historinha: A vendedora de fósforos, de Hans Christian Andersen, de cortar o coração de qualquer criança sensível, como eu era. Essa historinha narra, com requintes de detalhes dolorosos, o trajeto de uma pequena criança, muito pobre, que ia vender fósforos na rua, na Noruega ou na Dinamarca, Suécia ou Polônia, algum lugar desses muito frios. Ela usava um vestidinho leve, e os pés eram calçados apenas com chinelos velhos de sua mãe, e por isso lhe saíam dos pés, a ponto de terminar por perdê-los no caminho. Essa história acontece na véspera do Natal. Por onde ela passava, ia vendo casas iluminadas, em que todos estavam comendo jantares de luxo, o peru do Natal. Enquanto isso, ela ia riscando os fósforos que havia sido encarregada de vender, vendo, nas casas ricas, cenas maravilhosas de pessoas comendo ganso assado e outras iguarias. Acendendo outro fósforo, via uma bela árvore de Natal, rodeada de presentes. Já cansada de tanto andar, no frio e na neve, com as mãos e pés duros de frio, sem que ninguém comprasse os seus fósforos, sentou-se no umbral de uma porta. Não queria voltar para casa, sem dinheiro, porque seu pai certamente a espancaria, por não levar nada de dinheiro da venda. Imaginou então que ali, no meio daquelas luzes, entre as estrelas do céu, estaria sua avó, que já havia morrido. Pediu-lhe que a levasse consigo ao céu, onde já não haveria frio, nem fome nem preocupações. Aí acendeu todos os fósforos de uma vez, para continuar vendo a avó.
Já no dia seguinte, ela foi encontrada morta, enregelada de frio, ao lado do pacote de fósforos queimados…
Parece que o autor, com essa história, desejava chamar a atenção para as desigualdades existentes em seu país: a pobreza de alguns, com roupas que não eram adequadas para aquele frio inclemente, pois não serviam de abrigo, naquele clima, e com chinelos velhos e grandes, que não protegiam os pés, sendo as crianças obrigadas a saírem na noite, para vender artigos de necessidade, mas para uma criança o que fica é a profunda pena daquela menininha, morta de frio e de necessidade, vendo a fartura das mesas das pessoas ricas, os presentes aos quais ela não tinha acesso, uma vida tão diferente da que ela mesma levava. Mas, em vez de só despertar sentimentos de piedade ou compaixão pelos mais desfavorecidos, a gente passa por esses sentimentos de pena, tristeza, dor, uma vontade de poder remediar aquela situação de pobreza e necessidade…
Talvez a intenção desses autores, ao escreverem histórias “infantis”, pelo menos destinadas às crianças, fosse retratar a situação de pobreza e humildade em que eles mesmos viviam, pelo menos esse dinamarquês (Hans Christian Andersen), , para mostrar ao mundo que, mesmo nos países europeus, não existe só alegria e riqueza, mas também carência e sofrimento; agora, o que isso provoca nas crianças é uma sensação de desconforto moral, sentindo-se solidárias às desgraças alheias, ao menos eram esses os meus sentimentos, com essa história, especialmente.
Analisando bem todas as outras clássicas e tradicionais histórias infantis, o que se vê são narrações assustadoras, com profecias escabrosas, madrastas más, bruxas maldosas, duendes e ogros, fatos ameaçadores e aterrorizantes, como fusos de tecer que perfuravam os dedos e faziam dormir para sempre (A Bela Adormecida), maçãs envenenadas (Branca de Neve e os sete anões) e outros, que não me parecem tão indicados para os menorzinhos, mesmo amenizados com outras histórias de fadas benfazejas e fadas madrinhas. São narrações sombrias, por vezes lúgubres, e fantásticas.
Parece que os psiquiatras e psicólogos apoiam e até acham recomendável esse contato das crianças de bem curta idade com o sentimento de temor, mas não acho que o medo seja uma emoção de fácil manejo, e pode ser tão intenso a ponto de paralisar quem o sente, ou causar outros efeitos desagradáveis (fazer com que a criança se urine ao sentir medo, por exemplo). Acho que o medo não é bom para as crianças! Eu, já adulta, casada, e com filhos, sempre desfazia as ameaças com que as minhas empregadas tratavam de infundir medo às minhas filhas, para que dormissem (por exemplo, dizendo que, se não dormissem logo, o bicho papão viria comê-las, ou que no quarto escuro havia algum bicho ou outro elemento aterrorizante, se não ficassem quietinhas). Minha atitude era de desmentir essas afirmações, mostrando às minhas crianças que não havia nada que as pudesse amedrontar, e acendendo as luzes do apartamento, para que elas vissem que não havia motivo para medo, mesmo quando o quarto estava escuro.
Acho que infundir terror – ou simplesmente medo – às crianças não é nada recomendável, pois as induz a se tornarem pessoas temerosas e duvidosas, sempre com o medo presente nas suas vidas, sentimento esse que acho que a maturidade não remedia. Acho que a vida já terá oportunidade para fazer as pessoas enfrentarem os medos que forem surgindo, e de reagirem a ele, de forma sadia ou não, segundo as suas oportunidades.
Lembro de uma história, que não faz parte da coleção dos clássicos nem famosos autores (sua autora é Mary Buarque, e o livro se chama O Bonequinho de Massa). Já nem me lembro muito bem como era a narração, mas me provocava um medo terrível (sei que o bonequinho dizia algo assim: “ai, ningúem me pega, ai, ninguem me passa, … aí dizia algo mais, e terminava com o desfecho: sou o bonequinho de massa”). Isso me despertava um sentimento de terror, nem sei mesmo por que razão (acho que eu pensava que o bonequinho ia me comer ou fazer algum outro dano).
Felizmente, foi uma sensação que não perdurou na minha vida adulta: sou pouco medrosa, mais bem destemida e arriscada. Só tenho medo quando realmente há lugar para isso. Meu medo (irracional) é de alguns insetos, do tipo: barata, lagartixa, libélula, borboleta (bichos que voam), além de ratos, cobras e morcegos. De longe, não me provocam medo os grandes felinos, e até os considero animais lindos (tigre, onça, leão, leopardo, e outros mamíferos), mas possivelmente porque só os veja em situação de absoluta segurança (em zoológicos, filmes e programas de televisão), onde eles aparecem em todo o seu esplendor, beleza e imponência, mas sempre longe de me terem acesso. Geralmente, o medo não me paralisa, fazendo com que eu deixe de enfrentar as oportunidades e possibilidades que aparecem. Tenho sempre – ou quase sempre – a atitude de enfrentar os desafios, como mudanças de cidade ou de país, e até sirvo de exemplo para meus filhos, que têm a mesma atitude.
Cabe aos psiquiatras, psicólogos e psicanalistas – eu acho – fazerem descobrir as vantagens de ter medo, e então mostrar como enfrentá-lo, para que não paralisem as pessoas por ele acometidas. Já li artigos que dizem que sentir medo protege as pessoas de atirarem-se em situações de perigo, sem terem nenhuma noção dos riscos que estariam correndo, se não o sentissem. Como acontece com as crianças de tenra idade, que se expõem às vezes a situações arriscadas, devido a não terem medo de nada.
Comigo, aconteceu que a minha filha maior, quando tinha três anos de idade, subiu a uma janela do apartamento onde morávamos, sem grades nem outro tipo qualquer de proteção, e ficou daí perguntando preços aos verdureiros que vendiam em uma feira livre montada abaixo, na rua, a uns 40 ou 50 metros de altura da janela onde ela estava em pé, sem nenhuma noção do risco de cair. Foram os feirantes da rua que alertaram a empregada, que os ouviu gritando, a plenos pulmões: ”A menina vai cair!”
Nisso, a empregada os ouviu gritando, tentou abrir a porta do quarto onde a menina estava, mas não pôde: nós estávamos trabalhando, a minha filha entrou no quarto, trancou a porta à chave, subiu à janela e ficou perguntando, muito à vontade, sem nenhuma interferência de adultos, os preços das verduras e frutas da feira abaixo (“Moço, quanto é o abacate? Quanto é a laranja?“). Aí foi que eles viram que ela estava na janela, em pé, e começaram a gritar para que alguém a tirasse de lá.
Então, a minha empregada, meio desesperada, foi buscar um martelo e quebrou a abertura de ventilação da porta, entrou por aí, e com calma, falou com a minha filha, se aproximou e a desceu da janela.
Acostumada talvez a ser repreendida por algumas pessoas onde trabalhava, quando eu cheguei, a empregada ainda estava meio em pânico, receosa de que eu a repreendesse por ter quebrado a porta, e aí me contou a história, dizendo que havia feito uma coisa que talvez me deixasse zangada: tinha quebrado a porta; então, eu a tranquilizei, dizendo que, pelo contrário, eu só tinha que agradecer-lhe por ter tido a iniciativa de quebrar a persiana da porta e ter salvo a minha filha de cair daquela altura, cujas consequências eu não quero nem imaginar!
Esse episódio me revelou dois tipos de atitude: por um lado, a minha filha, a uma altura de 40 metros ou mais, com o destemor do risco de cair dali (acho mesmo que nem lhe passou pela cabeça; na verdade, penso que na sua tenra idade, ela nunca poderia supor esse perigo); por outro lado, a empregada, sem nenhum fundamento, deve ter ficado morrendo de medo da minha reação, ao saber que ela havia danificado uma coisa material, de algum preço e valor. Acho que não pensou em nenhum momento no ato de coragem que havia tido, “atrevendo-se” a quebrar a porta, pelo que eu só poderia estar-lhe agradecida, que foi o que sucedeu. Felizmente, hoje isso é só motivo de história para contar, com todo mundo rindo dessa aventura!
Acostumada talvez a ser repreendida por algumas pessoas onde trabalhava, a empregada ainda teve medo de que eu a repreendesse por ter quebrado a porta; então, eu a tranquilizei, dizendo a ela que, pelo contrário, eu só tinha era que agradecer-lhe a iniciativa de ter salvo a minha filha de cair daquela altura, cujas consequências seriam inimagináveis!.
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